A luz de Deus difratada em cores – a força do vitral no espaço sagrado.

Fábio da Costa Sotero.
Arquiteto, especialista em Espaço Litúrgico (PUCRS, 2008) e Iluminação (IPOG, 2016), aluno do curso de alta formação Arte per il Culto Cristiano (Pontificio Instituto Liturgico, Ateneo Sant’Anselmo, em curso), pesquisador autônomo da iluminação na arquitetura religiosa. Link LATTES: http://lattes.cnpq.br/3157292781991907

Introdução

A iluminação de espaços sagrados não é devidamente observada como elemento relevante para a eficácia de tais ambientes. Todavia, a contínua construção e manutenção de igrejas cristãs ao longo de milênios tem manifestado a luz como dotada de força simbólica excepcional e primordial para a percepção do espaço sagrado como lugar de encontro com o divino. O presente artigo trata da luz, manifestadora do transcendente, a partir de abordagem simples, para divulgação em site da empresa D’Falco Vitrais, solicitante do trabalho. São elencados alguns princípios conceituais e diretrizes para o planejamento da luz no espaço sagrado, a partir da análise do vitral como técnica que alia luz e cor, que diz do visível e do invisível. Palavras-chave: iluminação; igreja; vitral; luz; símbolo.

Bons espaços de oração e culto apresentam elementos elaborados para que o fiel perceba seu caminho pessoal de vida como percurso dinâmico, de aprendizado contínuo, que apresenta limites e ruma à santidade. A arquitetura sacra, assim como a arte sacra, segue diretrizes específicas: atender a liturgia, promover a mistagogia e apresentar mensagem atemporal. As várias escolas arquitetônicas desenvolvidas ao longo de dois milênios da cristandade promoveram linguagens próprias nesse sentido. Este artigo explora a contribuição da luz no espaço sagrado, tendo como referência particular o elemento vitral. O vitral é uma técnica adotada por muitos séculos, sendo aqui entendida como vidraça composta por vidros coloridos ou pintados que filtram a luz incidente.

A Arquitetura do Sagrado

Toda arquitetura de uma igreja – que engloba seus elementos físicos, sua tectônica, materialidade – compõe espécie de redação não lida, mas vivida. O fiel percebe a presença da narrativa feita pelo edifício e que, mesmo inconscientemente, é identificada e correspondida. O indivíduo ao dar o passo que adentra uma igreja comum, percebe um salão no qual pessoas são acomodadas, voltadas para um sentido e direção comuns (o presbitério, a área onde está o altar). Janelas, pilares, luminárias e ornamentos diversos complementam o campo visual organizados de forma usualmente ritmada.

Todos estes elementos, quando bem planejados, estão relacionados e contribuem mais ou menos para que o indivíduo vivencie uma experiência religiosa e, quiçá, experiência mística. A Luz é a arquitetura do sagrado. A primeira criação de Deus, a Luz-Sabedoria permite que o ser humano tenha consciência, vislumbre, perceba, reconheça. Criada a luz-física na quarta etapa da criação divina, a iluminação assume materialidade, ainda que não possamos “tocar” a mesma. O ser humano logra acolher em si tanto a Luz-Sabedoria como a luz-física (CICLO, 2020). O resultado é observado por muitos filósofos: a primazia da visão na percepção do espaço (PALLASMAA, 2011, p. 16). A luz no espaço sagrado apresenta particular similaridade com a presença de Deus, tanto quanto esclarece, ambienta, irradia vida. Plazaola afirma que a luz é o maior símbolo de Cristo (1965, p. 217). É bem possível se lembrar de uma igreja que lhe seja especial e perceber que está na memória a luz que ali incidiu, seja igreja antiga ou mais nova.

A luz marca presença de forma atemporal na vida das pessoas. É impactante para um visitante nos dias de hoje conhecer uma igreja românica; e a força da percepção se deve primordialmente pela luz. Não é algo cultural, mas a forma como a luz ali se faz presente sensibiliza o ser humano tanto do século XI como do XXI. A relação entre luz-física e Luz-Sabedoria na vida das pessoas é uma constante e deve ser planejada no espaço sagrado.

Planejar a luz sacra: a percepção da presença do invisível no visível.

Importa ressaltar que a boa incidência da luz no lugar de oração tem um valor simbólico que a distingue da marcação do tempo. O raio de luz que entra numa capela e destaca uma arte sacra diz menos do horário do dia e mais da presença da Luz, do transcendente, do não visível que se faz presente. Há alguns templos, particularmente europeus, que apresentam pequeno óculo ou abertura em suas abóbodas pela qual raios solares passam e marcam a passagem do tempo iluminando símbolos zodiacais. Mas mesmo nesses casos, como podemos verificar na Duomo de Milão ou Saint Sulpice em Paris, a solução engenhosa não quer apenas salientar a passagem do tempo, mas principalmente evidenciar a presença permanente de Deus.

Jesus é chamado de o sol que não tem ocaso, pois brilha permanentemente, iluminando a humanidade. A questão relevante é a presença e não a passagem. É o cosmo que fala de Cristo (RATZINGER, p.64). É a presença do transcendente no lugar de oração que marca a memória, simbolizada e registrada por meio da luz-física. O templo cristão participa do senso indiscutivelmente funcional e essencial que é o rito litúrgico. Diversos templos de outras religiões não são propriamente lugares de reunião de fiéis, mas espaços de culto reservados à divindade. Já o edifício cristão é desde o início denominado domus ecclesiae, ou seja, casa da Igreja, da assembleia do povo de Deus (RATZINGER, 2001, p. 59).

A igreja cristã é lugar que congrega e celebra realidades de naturezas diferentes: o divino e a criação; portanto, uma parte visível e outra invisível. Louis Bouyer afirma que a liturgia é a vida de oração e adoração que uma comunidade única realiza, a saber, o corpo místico de Cristo (2007, p.13). A parte visível do espaço sagrado é sinal sensível do mundo invisível, é instrutora e guia para que o visitante vislumbre e até toque a parte invisível.

Aprendizados e instruções são necessários e a arquitetura auxilia o entendimento do fiel que é como aluno de alfabetização, que primeiro se familiarizará com as letras e números para depois articular análises e argumentos mais complexos. O aproximar-se de Deus se dá em etapas de aprendizado; não é razoável contemplar o sol simplesmente direcionando o olhar a ele. Assim, a penumbra e a sombra no espaço litúrgico cumprem valorizar a luz que está mais adiante, fomentando que sejam dados mais passos rumo ao centro celebrativo (por isso mais iluminado) e auxiliar na objetividade de foco e atenção dos fiéis.

Depois de reconhecer o porquê iluminar, discernir como fazê-lo E como dosar a luz no interior do templo?

Esse desafio exige a análise de pessoas sensíveis à liturgia e quanto melhor para aquelas com amplo repertório das soluções já empregadas na história da arquitetura sacra somado ao conhecimento de novas tecnologias luminotécnicas. Mas, para conhecimento acessível a amplo número de pessoas, podemos ressaltar que: a) luz é símbolo, não apenas um quesito funcional; b) melhor a variação de intensidade luminosa que a homogeneidade; c) superfícies mais iluminadas serão mais constantemente observadas. O pensar sobre a iluminação de uma igreja e planejá-la não implica que a luz será muito “forte”. Afinal de contas, o espaço litúrgico plenamente iluminado não seria condizente para retratar a Igreja Militante reunida cá na Terra, mas sim a Igreja Celeste.

Os santos são aqueles que a Igreja afirma estarem frente a Deus e, por isso, são plenamente envolvidos em luz. A iconografia cristã tradicional, desde a antiguidade retrata essa realidade celeste com obras costumeiramente de fundo dourado e/ou brilhante (CLÉMENT, 1978 apud DONADEO, 1996, p. 28). A nossa realidade material, ou porque não dizer mundana, não é toda de luz. É uma experiência de percurso e o se aproximar de Deus é feito em etapas. Assim, a sombra e a penumbra são presenças bem-vindas e vizinhas desejadas da luz no espaço litúrgico. Importa ressaltar que a sombra é sinal bíblico da presença e manifestação de Deus, como no relato da Anunciação (Lc 1,35).

É próprio da natureza do ser humano distinguir coisas – sejam cores, formas, funções ou características quaisquer – comparando-as com outras. A valorização e destaque de determinados lugares é alcançada, dentre outros meios, com a variação de intensidade luminosa. A iluminação homogênea, ou seja, a que ilumina igualmente todas as superfícies do ambiente, iguala hierarquicamente todas as superfícies. Para pleno entendimento do que a homogeneidade de intensidade luminosa provoca, suponha momentaneamente a luz como uma cor, por exemplo, o azul. É compreensível o tormento de uma criança para identificar sua mãe num ambiente todo azul e no qual todas as muitas pessoas presentes se vestem também de azul e até mesmo apresentem a pele azul.

A igreja quando apresenta iluminação homogênea constitui lugar em que busca, foco e atenção para com o transcendente são dificultados porque tudo é iluminado igualmente. Soa estranho, mas, nesses casos, uma parede branca chama tanta atenção quanto a mesa da Palavra. O controle da luz é elemento chave para a boa concepção de espaços sagrados e dos que mais definem sua percepção pelo usuário.

Depois de reconhecer o porquê iluminar, discernir como fazê-lo E como dosar a luz no interior do templo?

A intensidade da luz externa é filtrada no colorido da superfície envidraçada. Tal difusor policromado, impede que os raios solares incidam diretamente no interior do edifício. A irradiação direta, aquela sem barreiras ou filtros, provoca alto contraste entre as superfícies banhadas pela luz natural e aquelas que não são, resultando em iluminação dramática e, por vezes, ofuscante. Com o vitral, as janelas trabalham como difusores, redirecionando a luz solar (antes retilínea e paralela) para áreas mais amplas e de forma suave. O brilho abunda na superfície envidraçada, mas de forma convidativa a contemplação. Técnica filha da arte do mosaico, o vitral tem como característica expressiva a aliança inseparável, concretizada em si, entre cor e luz (MUZJ, 2016, p. 47). Com esta característica cativante ao olhar, vitrais se destacam por linguagem bastante inteligível e sensível aos frequentadores em comparação aos inúmeros elementos arquitetônicos que “falam” e compõem o espaço sagrado. O longo período de aplicação do vitral ratifica a assertividade da técnica que “manifesta” algo.

O colorido no vidro retrata mensagens tirando partido de representações de figura humana, fauna, flora e mesmo abstrações. Todavia, não são estas representações que mais revelam a mensagem que o vitral transmite. O vitral “eclesial”, consentindo a transfiguração da luz natural segundo sua transparência colorida desenvolve um papel simbólico essencial: simbolizar a luz própria de Deus (COUTAGNE, 2016, p. 236). Afinal, o texto pode estar em uma língua desconhecida, os símbolos iconográficos podem não serem suficientes para que a figura de uma santa seja identificada, o desenho pode ser completamente abstrato ou a superfície envidraçada ser pequena, mas com tanta informação que se torna incompreensível (como em diversos exemplos de vitrais góticos, a exemplo de SainteChapelle em Paris). A principal contribuição do vitral no espaço sagrado é permitir que o visitante, crente ou não, vislumbre a presença e atuação de força superior, espiritualmente entendida como Deus e, fisicamente, simbolizada pela luz. Tal presença ilumina suavemente o que é matéria e aponta que a realidade não visível “colore” sua existência.

Não é a luz do sol simplesmente que adentra o espaço. A luz do sol reproduz as cores como são na natureza. O vitral retrata uma realidade não visível, destarte banha de luz as superfícies com cores vivas, não naturais. O colorido do vitral é abundantemente realizado com cores puras, aquelas com máximo de saturação. A iconografia cristã antiga segue o mesmo dos vitrais. Por apresentar a realidade verdadeira – que vai além da natural – dos personagens retratados, os ícones são escritos com cores puras. As cores puras são as mais associadas à vitalidade e à alegria – frequentemente presentes na ornamentação de festas religiosas como Natal e São João, e festas cívicas ou culturais como bumba-meu-boi e carnaval.

Finalmente é distinguido o efeito diurno e noturno do vitral. Durante o dia, o indivíduo no interior do edifício vê com destaque as cores e formas bidimensionais apresentadas no vitral; e esse é o efeito fundamental do vitral. Considerando que muitas celebrações são realizadas a noite, por vezes é manifestado o desejo de que o vitral seja iluminado artificialmente e o efeito diurno permaneça. Essa solução não é aconselhável pois “se o conceito de belo for separado do sentido da bondade e da verdade, tornar-se-á uma ilusão, uma mágica, uma pseudobeleza” (BRUSTOLIN, 2001, p. 32). Uma iluminação complementar pode ser considerada externamente, mas para que o fiel tenha noção do que o vitral apresenta e não como fonte de iluminação geral como durante o dia. A iluminação da Catedral Metropolitana de Goiânia e a de Brasília, exemplificam essa solução. À noite, quando celebrações noturnas são realizadas, o vitral ilumina suavemente o exterior. Este efeito ocorre quando a iluminação artificial no interior é mais intensa que o exterior. Em noites de celebrações especiais, os vitrais da Duomo de Milão são iluminados pelo lado de dentro especialmente pra serem vistos do lado de fora tornando a igreja como uma lâmpada a iluminar a cidade.

Considerações Finais

Pensar sobre o espaço sagrado implica refletir como tal lugar participa das celebrações nele realizadas. Dentre diversas soluções aplicadas, o vitral apresenta especiais contribuições: facilita a percepção da luz como símbolo de Deus que se faz presente na Igreja; promove variação de intensidade luminosa, retratando a busca da humanidade rumo à luz; colore a materialidade natural das superfícies com cores que remetem as suas realidades transfiguradas; torna o templo uma referência local de encontro com o transcendente.

Estes são pontos introdutórios e que exigem maiores aprofundamentos em contribuição ao tema da luz sacra. Não podem ser considerados como “receita” a ser seguida, pois existem muitas variáveis que precisam ser consideradas para discernir, medir e detalhar as soluções. Profissionais especializados em iluminação e arquitetura sacra, como este autor (@soteroarquitetura), permitirão alcançar a melhor e mais eficiente solução.

Referências Bibliográficas

BOUYER, Louis. Architettura e liturgia. Magnano: Edizioni Qiqajon Comunità di Bose, 2007.

BRUSTOLIN, Leomar. A beleza que salva o mundo, A experiência religiosa do Belo. Teocomunicação – Revista Trimestral de Teologia, Porto Alegre, v. 31, nº 131, p. 29-49, 2001. CICLO de Palestras I/2020

MAAS/UNIRIO – Arquitetura religiosa. Arquiteto Fábio Sotero. [S.l.: s.n.], 2020. 1 vídeo (28 min). Publicado pelo canal Museu Arquidiocesano de Arte Sacra RJ. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VhHta7xR3ng&t=911s. Acesso em: 30 abr. 2021.

COUTAGNE, Denis. Kim En Joong e l’arte della vetrata: la luce transfigurata. In: CONVEGNO LITURGICO INTERNAZIONALE, 13, 2015, Magnano. Architetture della luce: arte, spazi, liturgia. Magnano: Edizione Qiqajon, 2016. p. 235-255.

DONADEO, Maria. Os ícones: imagens do invisível. São Paulo: Paulinas, 1996.

MUZJ, Maria Giovanna. Il mistero cristiano del colore. Rivista di Ricerca in Teologia Spirituale, Roma, Anno 9, n. 1, p. 18-77, 2016. Disponível em: http://www.mysterion.it/. Acesso em: 1º maio 2021.

PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011.

PLAZAOLA, Juan. El Arte Sacro Actual. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1965.

RATZINGER, Joseph. Introduzione allo spirito della liturgia. Turin: Edizioni San Paolo s.r.l, 2001.

VIANNA, Nelson Solano & GONÇALVES, Joana Soares. Iluminação e Arquitetura. São Paulo: Geros s/c Ltda, 2001, p. XV.